quarta-feira, 21 de abril de 2010

Fluidos Biológicos- Ascite

Ascite (também conhecida como "barriga d´água" ou hidroperitônio) é o nome dado ao acúmulo de líquido no interior do abdome. Esse líquido pode ter diversas composições, como linfa (no caso da ascite quilosa, causada por obstrução das vias linfáticas), bile (principalmente como complicação da retirada cirúrgica da vesícula biliar), suco pancreático (na pancreatite aguda com fístula), urina (no caso de perfuração das vias urinárias) e outras. Mas, no contexto de doença do fígado com hipertensão portal (cirrose, esquistossomose, Síndrome de Budd-Chiari e outras), a ascite é o estravazamento do plasma sanguíneo para o interior da cavidade abdominal, principalmente através do peritônio, provocado por uma somatória de fatores.


Paciente com ascite severa.

A ascite, na doença hepática crônica, sinaliza que a doença está avançada e está relacionada ao aparecimento de outras complicações da cirrose, como a hemorragia por varizes esofágicas e a encefalopatia hepática. Inicialmente, pode ser tratada apenas com diuréticos e a dieta com pouco sal, mas à medida que a doença progride os rins podem não suportar os diuréticos e/ou desenvolverem a chamada síndrome hepatorrenal (falência dos rins causada por alterações cicrulatórias provocadas pela cirrose) e pode ser necessária a realização de paracentese (drenagem da ascite através de punção com agulha). Além de outras complicações, a presença da ascite pode levar à infecção do líquido ascítico, condição chamada peritonite bacteriana espontânea, que pode ser severa e com alta mortalidade se não tratada adequadamente.

Neste texto, será abordada apenas a ascite relacionada a doença hepática crônica e à hipertensão portal.

A ascite é uma condição muitifatorial, onde diversas alterações causadas pela doença hepática se somam e culminam no acúmulo de líquido intra-abdominal. A fisiopatogenia da ascite é muito mais complexa do que a exposta aqui, que está simplificada por questões didáticas.

Hipertensão portal

Com o aumento da resistência ao fluxo de sangue através do fígado (pela desorganização estrutural e/ou contração dos sinusóides na doença hepática), há um aumento na pressão em todas as veias que confluem na veia porta (sistema porta hepático).


Sistema porta hepático

Essas veias, que provém da maioria dos órgãos do abdome, tornam-se dilatadas (pela pressão interna aumentada e pela ação de vasodilatadores), levando ao estravasamento de um líquido filtrado do sangue que "escapa" dos vasos.


Corte sagital do abdome mostrando o peritônio envolvendo as alças intestinais e o fígado (linha preta mais escura).

O órgão que é responsável pela maior parte da produção do líquido ascítico é o peritônio, uma membrana que reveste a parte interior do abdome e alguns dos seus órgãos e que é permeável, tanto ao extravasamento de líquido para a formação da ascite, quanto à absorção do líquido durante o tratamento.

Pressão coloidosmótica (ou oncótica)

Apesar dos poros nos capilares sangüíneos, a presença da quantidade adequada de grandes proteínas plasmáticas, em especial a albumina (que é maior do que os poros), "segura" a maior parte do plasma dentro do vaso sanguíneo.


Estrutura tridimensional da albumina

Na cirrose, a quantidade de albumina pode estar reduzida (hipoalbuminemia) por dois motivos principais: a desnutrição, que é comum na cirrose avançada, ou a falência na produção da albumina, que é realizada exclusivamente no fígado, que está comprometido.


Estravazamento do plasma dos capilares sangüíneos

Sem a quantidade adequada de albumina, a pressão oncótica nos vasos sangüíneos diminui, o que torna mais "fácil" o extravasamento do plasma que está sendo "empurrado" pelo aumento na pressão do sistema porta.

Retenção de sódio e água pelos rins

Sempre que aumenta a pressão em um vaso sangüíneo, o organismo passa a liberar substâncias que levam à dilatação do vaso, para controlar a pressão. Se a hipertensão for por algum distúrbio bem localizado, isso pode ser suficiente até que o problema esteja resolvido. Se for causado por excesso de líquido em todo o organismo, alivia o problema até que o mesmo seja eliminado.

Na hipertensão portal, os vasodilatadores são liberados em todo o sistema porta, o que faz com que a quantidade de vasos dilatados seja muito grande e não estejam restritos apenas ao sistema porta (há uma vasodilatação em praticamente todo o organismo). No entanto, a quantidade de sangue é a mesma, o que faz com que, além de não resolver completamente o problema de hipertensão no sistema porta, a pressão sangüínea em todo o organismo esteja reduzida.

No entanto, os rins interpretam a pressão baixa como sinal de que falta líquido no organismo, portanto passar a usar mecanismos (sistema renina-angiotensina-aldosterona) para absorver mais sal e água e tentar elevar a pressão. O resultado disso é que a água e o sal extras, pelos mecanismos descritos anteriormente, vão aumentar ainda mais a ascite.

SINTOMAS E DIAGNÓSTICO

A ascite, quando pequena, não causa sintomas, sendo diagnosticada apenas por exames de imagem (principalmente a ecografia, que é realizada rotineiramente no cirrótico para rastreamento do carcinoma hepatocelular).


Ecografia mostrando ascite

À medida que o volume de ascite aumenta, pode-se observar aumento no volume do abdome, com sensação de "peso", tendência a edema (inchaço) dos membros inferiores e de testículo (especialmente na presença de hérnia ínguino-escrotal). Vale lembrar que, apesar da ascite ser a principal causa de aumento do volume abdominal em cirróticos, também pode ser causado por gases ou pelo acúmulo de gordura (obesidade). Ascites moderadas podem ser detectadas clinicamente pela percussão, onde observa-se submacicez móvel, entre outros sinais.


Paciente com ascite com grande quantidade de circulação colateral visível no abdome.

A ascite severa, com grande aumento do abdome, é facilmente identificável. Há um aumento no desconforto, na sensação de "peso" e há também dispnéia (falta de ar). A dispnéia pode estar diretamente relacionada à quantidade de líquido e piora quando o paciente está deitado, pois a ascite pressiona mais ainda o diafragma, reduzindo o volume dos pulmões. Mesmo assim, a dispnéia pela ascite deve ser diferenciada da causada por insuficiência cardíaca, da síndrome hepatopulmonar e do hidrotórax.


Derrame pleural pela ecografia do site Terason (clique na figura para abrir um vídeo do exame)

Além dos sinais e sintomas especificamente causados pela ascite, outros relacionados à causa da mesma podem estar evidentes. No caso específico da hipertensão portal , podem ser observados edema de membros inferiores, spiders, circulação venosa evidente na parede abdominal, equimoses e sinais de encefalopatia hepática.


Técnica da pesquisa de submacicez móvel para diagnóstico da ascite. Durante a percussão do abdome, observa-se a presença de submacicez na parte mais baixa do abdome, se o paciente estiver em pé, como na figura, ou nos lados, se deitado. Em seguida, pede-se para o paciente deitar de lado, observanso-se à percussão que o local de submacicez mudou para o lado que fica abaixo, refletindo a mudança de posição do líquido. É o achado mais seguro no exame físico para confirmar a presença de ascite, mas só surge quando há pelo menos 1.500 mL de ascite.

Para fins de classificação da cirrose na escala de Child-Pugh, a ascite é dividida entre "ausente", "leve" e "moderada/severa". A ascite leve englobaria a ascite observada apenas por exame de imagem (como a ultra-sonografia) e a observada no exame físico, mas sem grande aumento do volume abdominal. A ascite moderada seria a que leva a aumento significativo no abdome, mas sem a presença de falta de ar (dispnéia) e/ou de abdome tenso pela grande dispensão, que seriam característicos da ascite severa.

Classificação de Child-Pugh1

Encefalopatia hepática 2

ausente

1-2

3-4

Ascite

ausente

leve

moderada/severa

Albumina

> 3,5

2,8-3,5

<>

Bilirrubina total3

<>

2,0-3,0

> 3,0

Tempo de protrombina4

1-4

4-6

> 6

Pontos:

1

2

3

A: 5-6 pontos

B: 7-9 pontos

C: 10-15 pontos

Notas: 1soma-se os pontos para cada um dos cinco itens; 2classificação de West Haven; 3na cirrose biliar primária, utilizar os seguintes valores de bilirrubina total: 1-4 (1 ponto), 4-10 (2 pontos) e > 10 (3 pontos); 4segundos após o controle - é possível também utilizar o valor de RNI: <> 2,3 (3 pontos)

Punção do líquido ascítico

Em todo paciente com ascite recém diagnosticada, especialmente quando houver suspeita de ascite de outra etiologia não relacionada a hipertensão portal ou de peritonite bacteriana, deve ser colhido o líquido ascítico para análise laboratorial. Essa coleta é realizada através de punção, com agulha, da parede abdominal. É um procedimento muito simples nas ascites moderadas a severas (nas pequenas, pode ser necessário o auxílio de método de imagem, como a ultra-sonografia ou a tomografia computadorizada), pouco doloroso (sente-se apenas uma pontada) e praticamente isento de riscos se realizado adequadamente.

O líquido ascítico coletado é então analisado em laboratório. A não ser que exista suspeita de peritonite bacteriana, onde parte do material é aplicado imediatamente coleta em frasco com meio de cultura líquido (frasco de hemocultura) ou em suspeitas específicas, o líquido ascítico é colhida para obter dois valores: o gradiente de albumina soro-ascite e a quantificação de leucócitos polimorfonucleares.

O gradiente de albumina soro-ascite é a simples diferença entre a quantidade de albumina no soro sangüíneo (medida por exame de sangue no mesmo dia da coleta da ascite) e a do líquido ascítico. A ascite causada por hipertensão portal é um filtrado do plasma. Deste modo, mesmo que a quantidade de albumina no sangue esteja baixa, a quantidade na ascite é muito menor. Já nas ascites de outras causas, como a causada por câncer, onde há perda de sangue rico em albumina para dentro da cavidade abdominal, ou na ascite quilosa, causada por extravasamento de linfa, também rica em albumina, a diferença entre a quantidade de albumina do soro e da ascite é menor. Assim, o gradiente de albumina soro-ascite maior ou igual a 1,1 g/dL, particularmente com albumina sérica relativamente preservada (acima de 3,0 g/dL) tem precisão de 97% de diferenciar a ascite causada por hipertensão portal da de outras causas.

Os leucócitos polimorfonucleares (neutrófilos) são células de defesa do sistema imunológico. O achado de mais de 250 células por mm3 é altamente sugestivo de peritonite bacteriana espontânea. A presença desse achado, portanto, exige a coleta de nova amostra para cultura bacteriana. Essa nova coleta deve ser aplicada em frasco de meio de cultura líquido (geralmente frasco de hemocultura) imediatamente após a coleta, na beira do leito, para aumentar a chance de que a bactéria cresça em cultura, seja identificada e que os principais antibióticos sejam testados para demonstração da sensibilidade aos mesmos, orientando as melhores opções de tratamento.

TRATAMENTO

Tratamento não diurético

  • A abstinência alcoólica diminui o dano ao fígado, melhora o componente reversível da hepatopatia alcoólica e pode reduzir a hipertensão portal, levando a melhor na ascite; além disso, a abstinência em alcoólatras pode levar a melhora nutricional, com aumento na albumina sérica e melhora na pressão coloidosmótica do sangue;

  • Como a retenção de sódio e água pelo rim é fator fundamental no desenvolvimento da ascite, a restrição de sódio é primordial no controle da mesma: recomenda-se uma restrição severa, abaixo de 88 mmol de sódio ao dia (preferencialmente com o auxílio de nutricionista clínico); não está indicada a restrição de água, a não ser em casos de hiponatremia (baixo sódio no sangue) severa (abaixo de 120 mmol/L);

  • A restrição absoluta ao leito não está indicada;

  • Recomenda-se o registro diário do peso corporal, uma vez que as perdas mais evidentes ocorrem por aumento ou perda do líquido acumulado, sendo um bom parâmetro para observar a resposta ao tratamento;

Tratamento diurético

O tratamento com diuréticos é recomendado para todos os pacientes com ascite secundária a hipertensão portal e que não possuam disfunção dos rins, seja por síndrome hepato-renal ou por outras causas. Como os diuréticos podem induzir o desenvolvimento da síndrome hepato-renal, que é uma complicação grave da cirrose e pouco tratável, a sua introdução deve ser cautelosa.

Os dois diuréticos mais utilizados na ascite são a espironolactona e a furosemida. A furosemida é um diurético de alça, muito potente, mas que tem a desvantagem de causar um aumento da eliminação de potássio pela urina, podendo levar a falta de potássio no sangue - hipocalemia - uma condição que predispõe a câibras e, em casos mais severos, a arritmia cardíaca. A espironolactona (aldactone) apesar de ser um diurético menos potente, tem a vantagem de promover a redução da eliminação de potássio na urina, contrabalançando a perda induzida pela furosemida. Por outro lado, a espironolactona tem início de ação e meia-vida (tempo em que fica no organismo) demorados, o que pode ser indesejado se houver indução de síndrome hepato-renal.

Fonte :http://www.hepcentro.com.br/ascite.htm

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